HISTÓRIA: Nota biográfica

A importância de João Miguel dos Santos Simões impôs um antes e um depois à história da investigação sobre o azulejo. A sua contribuição basilar em áreas tão determinantes como, por exemplo, o inventário e a investigação, e a forma como conquistou para a azulejaria um lugar próprio no contexto da História da Arte Portuguesa foram determinantes para a evolução do estudo da azulejaria em Portugal. A vasta bibliografia e, em particular, os corpora que reuniu, continuam, hoje, a constituir uma referência fundamental para quem se dedica à investigação azulejar. 


João Miguel dos Santos Simões nasceu na cidade de Lisboa em 1907, no seio de uma família ligada à cultura: o pai José Rodrigues Simões possuía uma apreciável biblioteca e ocupou durante algum tempo o cargo de tesoureiro da Associação dos Arqueólogos. Neste ambiente, o jovem Santos Simões contactou com figuras importantes do mundo da História da Arte como Garcez Teixeira e Vergílio Correia. No entanto, a personalidade que o marcou foi José Queirós, notável ceramólogo, por quem nutria especial afeição e que, em conjunto com o Pai, o sensibilizou para as questões artísticas.

Pelo facto do pai possuir, em Tomar, uma fábrica de fiação têxtil, formou-se em Engenharia Têxtil na École Superieure de Filature et Tissage de Mulhouse em 1929 e, um pouco por toda a Europa, fez estágios na indústria algodeira. No entanto, os interesses artísticos acompanharam-no sempre e, por isso, viajou pelas principais cidades europeias, visitando monumentos e museus, o que muito contribuiu para a consolidação dos conhecimentos em História da Arte. Assim, logo em 1942 publicou o primeiro estudo sobre azulejaria na revista A Cidade de Évora.

O ano de 1944 foi marcante no seu percurso de investigador da azulejaria, não só pelos estágios teóricos em Madrid, como também pelo estágio prático na Fábrica Ruiz de la Luna onde conheceu os processos técnicos da azulejaria. Tal facto influenciou-o decisivamente, pois na sua casa, em Tomar, montou um pequeno laboratório para exame de pastas cerâmicas. Esta vertente técnica e a sistematização do conhecimento herdado da metodologia das ciências foram aplicados ao estudo da azulejaria e este método revelou-se imprescindível para a construção de uma tipologia que ainda hoje vigora entre os estudiosos da área.

De 1944 em diante, os seus estudos sobre azulejaria portuguesa não pararam de crescer e foi o estudioso que, internacionalmente, mais se evidenciou. Neste sentido, destacamos: Antwerpesche tegels van omstrecks 1558 in Portugal, em colaboração com van Herck, na obra Antwerpens Koninklike Oudheidkundige Kring; Maioliche flamminghe e spagnole in Portogallo, para a revista Faenza; Le role de la décoration céramique dans l’architecture portugaise dês XVII-XVIII siécles, publicado nas actas do XVI Congrés International d’Histoire de l’Art; o livro galardoado Le carreaux ceramiques hollandais au Portugal et en Espagne; e a importante participação na obra Fliesen com os artigos The tiles of Spain and Portugal e The influence of Dutch tiles in Portugal and Brasil. Pela obra que deixou, ainda hoje, o nome de Santos Simões é referência incontornável nos estudos de azulejaria e cerâmica, quer a nível nacional, quer a nível internacional, deixando-nos a herança de ter disseminado o azulejo como marca identitária da cultura portuguesa.


 

Selecção de textos sobre Santos Simões

HENRIQUES, Paulo – O Homem de Hoje – João Miguel dos Santos Simões. In João Miguel dos Santos Simões 19071972. Lisboa: Ministério da Cultura / Instituto Português de Museus / Museu Nacional do Azulejo, 2007, p. 13–22. 

MONTEIRO, João Pedro – Teórico e Historiador do Azulejo em Portugal. In João Miguel dos Santos Simões 19071972. Lisboa: Ministério da Cultura / Instituto Português de Museus / Museu Nacional do Azulejo, 2007, p. 31–48. 


 

Santos Simões visto por Vitor Serrão

João Miguel dos Santos Simões, coleccionador de interesses e saberes:
a História da Arte e a reabilitação integral da arte do Azulejo
(2009)

Deve-se ao Eng.º João Miguel dos Santos Simões (1907-1972) a nova visão esclarecida sobre o Azulejo como parte integrante das especificidades artísticas portuguesas e o reconhecimento da importância de tal dimensão a nível internacional. 

A reputação atingida pelos trabalhos verdadeiramente pioneiros deste grande historiador de arte permitiu que os estudos de Azulejaria passassem a ser estruturados por uma metodologia e por uma visão alargada, não formalista (e muito menos preconcebida ou preconceituosa). Com os seus trabalhos, o Azulejo pôde finalmente ser visto como modalidade artística de primeira ordem, deixando de se subordinar a uma certa "tutela amesquinhante de cerâmica móvel" a que estivera quase sempre reduzido, passando a ser admirado dentro de um estatuto de obra de arte integral. A acção de Santos Simões a partir de 1947, como colaborador do Museu Nacional de Arte Antiga, constituiu o lastro que permitiria a realização, com o esforço paciente dos anos seguintes, do monumental corpus da Azulejaria portuguesa (publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian em vários tomos analítico-inventariais a partir de 1966). Com esta obra, consolidou-se a evidência de que o Azulejo se situa, afinal, entre as mais notáveis e originais dentre as várias modalidades de criação artística que se testemunham no património histórico-artístico nacional desde o século XV aos nossos tempos. 

"A metodologia de João Miguel dos Santos Simões deve mais às Ciências Exactas que às Humanidades", disse Paulo Henriques, antigo director do Museu Nacional do Azulejo, e esse traço de formação de base permitiu-lhe afastar-se, logo nos anos 50, das convenções redutoras ao tempo dominantes na História da Arte, e abrir caminho a uma pesquisa objectiva, de rumos traçados, aliando saberes técnicos, laboratoriais, iconográficos, históricos, comparatistas e estéticos. Essas especificidades do seu "modo de ver" geraram uma vasta bibliografia de referência e, mais do que isso, estruturaram o exemplo de uma visão globalizadora do "facto artístico". Os trabalhos de outros estudiosos que lhe seguiram o exemplo, com especial destaque para José Meco a partir dos finais dos anos 70, só poderiam ser possíveis com a qualidade das metodologias e o aprofundamento dos tipos de análise rasgados por Santos Simões.

De facto, é a força cenográfica da arte do Azulejo, a sua disponibilidade para animar espaços arquitectónicos (vejam-se os revestimentos integrais de padronagem do século XVII), o talento que tantas vezes perpassa na sua execução (veja-se a obra de António de Oliveira Bernardes), o gosto com que se irmana com outras artes (veja-se a sua relação íntima e feliz com a talha dourada, a escultura de vulto, a pintura de brutesco, a arquitectura de jardim), a sua predilecta relação com a luz, a água e os elementos da natureza, que tornam a arte da Azulejaria uma modalidade maior da criação portuguesa com expressão fortíssima, também, nos territórios da Lusofonia. Os estudos publicados desde os anos 80 sobre Azulejo, com ênfase nos realizados no seio do Museu Nacional do Azulejo, os que estudiosos como José Meco lhe vêm dedicando, e através dos projectos de investigação e trabalhos continuados dos técnicos da Rede Temática em Estudos de Azulejo e Cerâmica João Miguel dos Santos Simões (RTEACJMSS)*, coordenada por Susana Varela Flor e Rosário Salema de Carvalho, têm vindo a consolidar uma linha de pesquisa cuja definição estratégica e sentido de enfoque crítico remontam, justamente, ao labor de Santos Simões.

O traço de identidade de João Miguel dos Santos Simões foi sempre a sua disciplina, aliada à grande paixão por saber mais, como afirmavam os seus colegas e admiradores, desde historiadores de arte, como Adriano de Gusmão, Flávio Gonçalves, Mário Chicó e Artur Nobre de Gusmão, Túlio Espanca, Nogueira Gonçalves, Mário Barata e Dora Alcântara, Yves Bottineau e George Kubler, a artistas como Almada Negreiros e Sarah Afonso, Eduardo Nery e Querubim Lapa, a museólogos como João Couto e Rafael Salinas Calado, e muitos outros, nacionais e estrangeiros. Desde cedo reconhecido pela sua faceta de modernidade, devidos aos périplos pela Europa e aos estudos em Inglaterra (que lhe valeram, em Tomar, o simpático epíteto de "John da Fábrica"), Santos Simões foi um erudito, um cosmopolita, um sábio viajeiro, actualizado de informação, com uma visão do mundo que lhe permitiu traçar objectivos de vida e de pesquisa. Esse seu alicerçar da investigação, a partir de uma base formativa em Engenharia Têxtil (com diploma em França em 1929), com especialização no College of Technology de Manchester, prática de gerente da paterna Fábrica de Fiação de Tomar, numerosas visitas de estudo em Inglaterra, Itália, Alemanha, Suíça, Áustria, Holanda, Bélgica, Hungria, Checoslováquia, e ainda Estados Unidos, possibilitou que a obra de historiador da arte e também de museólogo atingissem tal proporção inovadora. Mas os seus interesses de "homem bom", de cientista "muito desprendido materialmente", eram muitos e extravasavam o amor pelo Azulejo: também fundou o Sky Club de Portugal na Serra da Estrela, trouxe dos EUA o jogo do Monopólio, criou o Grupo de Amigos dos Moinhos, estimulou a prática do Caravanismo, etc. etc. 

Aquando da comemoração, em 2007, do centenário do nascimento de Santos Simões, que incluiu uma grande exposição monotemática realizada no Museu Nacional do Azulejo e a doação ao mesmo Museu do arquivo pessoal, pelos herdeiros, a sua filha Maria João Real, num depoimento ao jornalista José Vítor Malheiros que a questionava pela ausência de azulejos no espólio de dossiers, cadernos e livros (Público de 17-VII-2007), afirmava que o pai "era um estudioso, não um coleccionador, ou melhor, era um coleccionador de interesses e saberes"... A definição é precisa: Santos Simões foi, na realidade, um historiador de arte de alargadíssima visão, apto como poucos a realizar um trabalho continuado a partir da elaboração de conceitos e da construção de uma metodologia adequada. Poucos autores portugueses abriram tantas portas, como Santos Simões, para o desenvolvimento da História da Arte e a revalorização do património artístico.

* actual Az - Rede de Investigação em Azulejo
  

Santos Simões numa conferência organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1968

Visita ao Palácio Fronteira, em Lisboa, por ocasião do I Simpósio Internacional de Azulejaria, 1971

Máquina fotográfica de Santos Simões